CARTA DE PORTO ALEGRE – 2022 CARTA PELA JUSTIÇA E PELA DEMOCRACIA

O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia aconteceu de 26 a 30 de abril de 2022. Sua programação foi dividida em cinco eixos com mesas abordando temas ligados à justiça e à democracia. Também relacionados a estes eixos mais de 70 atividades autogestionadas se espalharam pela cidade de Porto Alegre. Hoje a Carta de Porto Alegre. Nos próximos dias o Comitê Facilitador do FSMJD divulga as propostas apresentadas em cada eixo temático.

Marcha de Abertura dos Fóruns Justiça e Democracia e Resistências

Neste dia 30 de abril de 2022, o Fórum Social Mundial Justiça e Democracia (FSMJD) inaugura uma nova etapa de sua existência. Ele não se encerra aqui. Ao contrário! Alimentado de ideias e de propostas geradas ao longo dos últimos quatro dias em que nos reunimos presencialmente, nessa trégua – embora precária – de uma pandemia que tanto nos maltratou e impôs por duas vezes o adiamento deste evento, o FSMJD prosseguirá amanhã, depois de amanhã… e depois… e depois… e depois, para cumprir o seu papel: o de ser movimento de luta para a transformação dos sistemas de justiça, assim como de reestruturação de instituições nele envolvidas e comprometidas com os valores da democracia, da dignidade e da justiça social.

Em diversos pontos de Porto Alegre, realizamos atividades múltiplas e palpitantes: palestras, rodas de conversa, exibição de filmes, lançamentos de livros, performances artísticas. Todas essas atividades tiveram um só propósito: apontar os dados, cada vez mais nítidos, de que os atuais sistemas de justiça se voltam a produzir injustiças: de um lado, com a inoperância para efetivar direitos fundamentais de parcela expressiva da população; de outro, com a lógica da seletividade no tratamento de conflitos de natureza coletiva, sobretudo naqueles em matéria criminal, caso em que assume ares inequívocos de perseguição, sendo o lawfare o exemplo mais contundente.

Numa perspectiva sistêmica do agir institucional, observa-se a influência avassaladora e progressiva da lógica neoliberal na justiça, que ignora a importância dos direitos da pessoa humana e cuida da preservação dos interesses econômicos e financeiros dos donos do capital. A captura econômica da lógica jurídica humanista exacerbou o DNA do capitalismo.

Nesse contexto, os sistemas de justiça manejam a ordem jurídica apenas formalmente, desconstitucionalizando direitos ao sucumbir às investidas do capital e de interesses oligopolistas, que apostam na agudização da concorrência entre os indivíduos e na mercantilização de todas as esferas da vida social. A ambição em concentrar riqueza, um dos pilares centrais do capitalismo, tem se intensificado na ordem neoliberal, fazendo emergir um poder autoritário, quando não tirânico. Mediante a captura de mentalidades de um número significativo de membros dos sistemas de justiça, essa lógica avança no projeto de perseguir pessoas por força de suas posições e opiniões políticas avessas à opressão econômica; ela teima em suprimir os direitos da população mais pobre, elevando os indicadores da miséria; ela investe impiedosamente contra os direitos da classe trabalhadora, precarizando-a como força produtiva; e não se esquece de alvejar também outros setores vulnerabilizados da população, a fim de subtrair-lhes toda e qualquer dignidade humana.

O Fórum Social Mundial Justiça e Democracia – movimento de arregimentação das forças sociais voltado à permanente avaliação, denúncia e transformação dos sistemas de justiça, para a garantia da democracia – identifica a ação dos sistemas de justiça fragilizados na sua independência, que se prestam a aprofundar o fosso entre a institucionalidade e a cidadania. Denuncia, então, tais sistemas instruídos pelo neoliberalismo, conformados à burocracia e pouco entusiastas da democracia, que se mostram antes propensos a abrir do que fechar as portas para o fascismo.

Tal propensão, além de gerar críticas, impõe a autocrítica como necessidade inescapável de quem atua no interior desses sistemas. Ela demanda um agir concentrado para extrair o racismo, o poder patriarcal cis-heteronormativo e o elitismo que contaminam os sistemas de justiça instituídos nos territórios dos países colonizados e que contribuem para sequestrar a democracia. Urge, pois, uma autocrítica disposta a ver essas marcas históricas e a comprometer-se com a superação delas.

Os dias de trabalho intensos que tivemos significaram, portanto, um momento de denúncia das falhas dos sistemas para efetivar a justiça e também um espaço de fortalecimento da nossa resistência para avançar no sentido de construir uma democracia de fato inclusiva e garantidora do respeito aos sujeitos. Mais do que isso, serviram para demonstrar que “democracia, justiça e participação são convocações do real”.

Este Fórum oferece a oportunidade e ressalta a importância de “vencermos o obstáculo epistemológico dos paradigmas que isolam o jurídico na forma e na lei”, distanciando o Direito da vida concreta. Ele nos lembra que “a função do Direito é contribuir para a obra da humanização” e que “a humanidade é uma experiência histórica e social”.

Ao desvelar as falhas dos sistemas de justiça por meio de depoimentos de pessoas que foram afetadas por eles ou por meio de estudos bem sistematizados, este Fórum presencial contribui para mensurar a extensão dos danos para a democracia que um sistema de justiça corroído acarreta. Também permite dimensionar os desafios com os quais nos deparamos para reafirmar a opção por um modelo de sociedade que seja alicerçado no princípio da igualdade, organizado em torno da ideia de emancipação política dos seus membros e, ainda, combativo quanto ao avanço do neoliberalismo econômico que leva ao exaurimento dos recursos naturais e objetifica as pessoas, automatizando-as. Isso sem contar que o neoliberalismo tenta apagar os saberes de povos originários (ainda resistentes) e solapa qualquer ideia de implantação do bem-viver para a maioria da população, consagrando o poder absoluto de alguns indivíduos ou corporações, pretensamente onipresentes por meio de plataformas digitais.

Esses problemas nos desafiam a deflagrar hoje e em nome da democracia um movimento de mobilização permanente, de articulação e execução de ações concretas que transformem os sistemas de justiça, eliminando o caráter elitista, racista e patriarcal que historicamente foi tecendo a sua configuração. Trata-se, antes de mais nada, de mirar a fraternidade e a solidariedade entre os povos como pilares necessários à construção de um mundo para todas, todos e todes.

Com nossas atividades, alcançamos o discernimento de que Democracia e Justiça não são resultado de lei ou regimento, mas estão inscritas no seio da sociedade e são impulsionadas pela avaliação e pela injunção crítica e contínua dos sujeitos coletivos que fazem a mediação entre sociedade e direito. São eles que constroem coletivamente a sua independência social com base nas interações permanentes no sentido de fazer a temática do nosso fórum: democracia e justiça, a nossa vida.

Nós, que aqui nos reunimos, mergulhamos nas atividades, nos emocionamos, nos indignamos com o que pudemos ver, ouvir e conhecer sobre o funcionamento dos sistemas de justiça e os danos à democracia por eles provocados, reforçamos o compromisso de atuar para transformar os sistemas de justiça e construir uma democracia real. Destacamos que este compromisso é compartilhado por quem está aqui presente e por tantas outras pessoas que contribuíram para a realização deste Fórum e não puderam desfrutar deste momento de gestação de outro mundo possível.

Hoje se renova, no nosso coração de estudante, “a aurora de cada dia”: a esperança de uma utopia que “pode estar aqui do lado, bem mais perto que pensamos”. “Se o poeta é o que o sonha o que vai ser real”, sejamos poetas! Tenhamos em mente “a presença distante das estrelas”! Encorajando a revoada do eu passarinho, sejamos nós passarada! “Sob o sol da justiça social, nossa voz a resistir / ocupa-se de marginal, o bloco que ousa colorir / Lutando por direitos na rua, atravessando a alma minha e tua / São as procissões que se encrustam na via, multidões, utopia / Tivera a coragem das flores, que no temporal embelezam o dia / Tendo a sorte breve como os amores, mesmo despetaladas são valentia / Se eu cair, vou cair lutando / Se o fim chegar, não há de me encontrar chorando / Mas isso é coisa de quem não negocia a humanidade, a democracia”.

Com aspas indicando falas singulares de pessoas que avolumam e colorem este canto geral por justiça e por democracia, seja na sua construção direta, seja no suporte ancestral, lindamente sintetizado na canção e na voz do gaúcho Mauro Moura, transgredimos a gramática ao abrir mão aqui do ponto final, para dizer que estamos apenas no começo

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