Cotas raciais, uma urgência civilizatória

Por Alessandra Elias de Queiroga*

É preciso que os espaços sejam enegrecidos, que as pessoas negras tenham a representatividade que reflita a composição racial de cada estado brasileiro

UnB foi a primeira universidade federal a adotar sistema de cotas raciais UnB reserva vagas para negros desde o vestibular de 2004 Percentual de negros com diploma cresceu quase quatro vezes desde 2000, segundo IBGE – Foto: © Marcello Casal Jr/Agência Brasil

Em 2003, depois de quase uma década de tentativas, os professores José Jorge de Carvalho e Rita Laura Segato conseguiram implementar, na Universidade de Brasília, a primeira política de cotas raciais para ingresso em uma universidade pública federal no Brasil. De lá para cá, a Unb se transformou e hoje, embora ainda não represente o quadro racial que temos no Distrito Federal, passou a ser um espaço onde pessoas negras se reconhecem, se contemplam, não se sentem estrangeiras no seu próprio país.

No semestre letivo que terminou mês passado, o mesmo professor José Jorge de Carvalho propôs um exercício para seus alunos, entre os quais eu me incluía, que consistiu no mapeamento dos institutos, departamentos, faculdades e outras divisões administrativas e acadêmicas da Universidade de Brasília, para que avaliássemos a quantidade de professoras e professores negros que ocupavam cargos de direção na universidade. E o resultado foi desalentador. Nos sessenta anos de uma universidade tão importante para o país, de uma universidade que foi pioneira na política de cotas, as pessoas negras ainda são ampla minoria em cursos de pós-graduação e em cargos de direção. E essa constatação só reforçou a necessidade premente que temos de ampliar, de fortalecer o sistema de cotas no país.

Em agosto, a Lei 12.711/12, a lei de cotas, completará 10 anos e, segundo dispõe seu artigo 7º, deverá ser revista. E é essa revisão que precisa ser amplamente debatida pela sociedade, com todo o cuidado para que não retrocedamos ainda mais nas conquistas civilizatórias. 

Há quem diga, não sem razão, que é bastante perigoso proceder a essa revisão em um ano eleitoral, em que o país se encontra tão dividido e propício ao cultivo do ódio. Há quem se assuste com a possibilidade – totalmente falaciosa, acredito– de que a falta de revisão no prazo estabelecido possa levar à interpretação de que a lei de cotas perderá sua eficácia. Mesmo assim, existem propostas em tramitação que necessitam de acompanhamento, especialmente se considerarmos que não temos dados concretos coletados pelo Ministério da Educação, e tampouco pelo IBGE, para subsidiar decisões sobre esse tema. Enquanto os órgãos do Executivo não voltarem a funcionar, nesse apagão institucional em que nos encontramos, não há como se pensar em uma proposta calcada em dados científicos.

De todo modo, o debate está posto e precisa ser aprofundado para que, quando houver essa revisão, que o seja para ampliar a noção da necessidade de cotas, não só as fortemente amparadas por critérios de renda – como foi a opção feita na citada lei de 2012 – mas para ter em foco também seu caráter indenizatório, de política compensatória pela chacina, pela tortura, pela exploração nefasta que foi a política estatal oficial durante três séculos e meio e que continua sendo a política estatal e da elite branca nos últimos 134 anos, desde a assinatura da Lei Áurea.

Tendo voltado em 2018 para os bancos da graduação na Unb, através de vestibular a fim de cursar Ciências Sociais, tive a dolorida mas necessária oportunidade de ouvir os testemunhos de colegas negras e negros, além de alguns poucos indígenas, em relatos diários de lutas contra o racismo, dentro e fora da Universidade. Mas, verdade seja dita, não causa mais nenhum estranhamento a circulação de pessoas negras ou indígenas nos corredores – como causava quando fiz minha primeira graduação naquela universidade, em Direito, há cerca de três décadas. Naquele tempo, basicamente só se viam pessoas negras estrangeiras, fruto de convênios da universidade com organismos internacionais, especialmente considerando que Brasília é a capital do país, onde se fixam a grande maioria das representações diplomáticas. Não me recordo de nenhum estudante indígena naquela época.

Para a branquitude, pode parecer um apelo melodramático falar de estranhamento com a circulação de pessoas negras ou indígenas em espaços acadêmicos. Por isso entendi ser oportuno trazer um trecho do depoimento prestado pela soteropolitana Lindinês de Jesus Souza, a Lindi, para os jornalistas Tomás Chiaverini e Gabriela Mayer, no episódio número 68 do excelente e indispensável podcast Rádio Escafandro, onde ela conta como se sentiu quando entrou no programa de bacharelado interdisciplinar de saúde da Universidade Federal da Bahia:

“ Pense assim… Eu, com essa cara, com esse cabelo, ver pessoas com essa cara, com esse cabelo, transitando naquele espaço, serenas, em paz, assim sem você passar e ninguém te encarar porque você está com o cabelo armado. As pessoas te tratarem como, sei lá, como se você estivesse ali o tempo todo, como se você não fosse uma estrangeira, uma alienígena”

Esse episódio da Rádio Escafandro, que recomendo fortemente, trata ainda de diversas situações de racismo sofridas por Lindinês, de fraudes ao sistema de cotas, da postura incompreensível do Poder Judiciário, que várias vezes reconduz às vagas das universidades pessoas fraudadoras do sistema de cotas.

A reportagem da Rádio Escafandro ainda conta as experiências de universidades voltadas só para pessoas negras, tradicionais em um sistema como o dos EUA que, com sua política discriminatória declarada, acabou por criar centros de excelência acadêmica voltados para pessoas negras e que serviram de inspiração para a universidade paulistana Zumbi dos Palmares, fundada pelo pós-doutorando José Vicente. Pode não fazer sentido para uma pessoa branca pensar em espaços só de pessoas negras. Mas essas foram condições criadas por nós, brancos, que  trouxemos e continuamos a engatilhar o olhar racista, sem ao menos nos dar conta, deixando as pessoas desconfortáveis, quando não inseguras, inclusive fisicamente.

Esse podcast, assim como o filme Medida Provisória, dirigido por Lázaro Ramos, apenas para falar de reflexões bem recentes, tratam, em suma, da experiência de ser uma pessoa negra diuturnamente oprimida, constrangida e eternamente em sobressalto, lutando por espaço e reconhecimento. E essa não é uma questão de menor importância. Muito pelo contrário, é o ponto principal, é a origem de toda a opressão e diferenciação, é o nascedouro da violência e divisão na nossa sociedade. Discutir esse tema não é, como interessadamente alguns insistem em afirmar, fomentar a divisão entre as pessoas. É reconhecer que nós, brancos, não criamos qualquer condição para que as pessoas negras se sintam em paz, que possam andar com serenidade, como menciona Lindi. 

Seu Mateus Aleluia, um homem cuja arte tem mais poder do que poderia caber em qualquer outra forma de expressão, mudou-se para Angola no ano de 1983, aos 40 anos de idade, e lá sentiu a experiência que foi traduzida na canção Fogueira Doce, cuja letra invoca a  vívida sensação de êxtase do ser humano se sentindo livre:

Fogueira doce
Sol madrugando
É Luanda e basta
Beleza divinal
Maravilha
É o sol se pondo
É Luana e basta
Beleza sem igual

É nesse Shangri-La dourado
Que sonho já de outras vidas
Sereia nesse mar de sonhos
Bailando em ritos coloridos
Luanda, mistério
Resgatou-me a vida


Quando eu vim pra esse mundo
Eu mostrei minha cara
Sem marcar bobeira
Cantei o meu canto
E fiquei por cá
Coisa castiça
Coisa tão bonita
Coisa tão faceira
Cantei o meu canto
E vi Luanda

Meiguice crioula
Crioula meiguice
É só rosa e basta
Nasci pra lhe amar
Convivi bonito
Com minha esquisitice
É só rosa e basta
Nasci pra lhe adorar

Eu que vinha de outras terras
Tratando das minhas feridas
Trazidas de uma vida aflita
Meus traumas Freud não explica
Eu encontrei a rosa
E me tornei roseiro


Quando eu vim pra esse mundo
Eu mostrei minha cara
Sem marcar bobeira
Cantei o meu canto
E fiquei por cá
Coisa castiça
Coisa tão bonita
Coisa tão faceira
Cantei o meu canto
E vi Luanda

Para que todas as nossas joias, nossos mestres, como seu Mateus, não tenham que ir embora do Brasil, como na distopia de Medida Provisória, ou acabem assassinados nas periferias, é preciso que os espaços sejam enegrecidos, que as pessoas negras tenham a representatividade que reflita a composição racial de cada estado brasileiro, em todos os espaços institucionais, em todas as empresas e, em especial, nas universidades e locais de livre pensamento. É ainda necessário que os indígenas, nossos primeiros ancestrais, também tenham garantidas suas vagas nas universidades e todos os outros espaços, para que possam nos ensinar e defender seus direitos, como temos visto na recente luta contra o marco temporal – proposta que pretende considerar como válidas para efeitos de demarcação apenas as áreas efetivamente ocupadas por indígenas na data da promulgação da Constituição, em 1988.

O que chamamos de civilização só pode ser alcançado com a renúncia à barbárie e à dessensibilização, com o reconhecimento dos diversos saberes, a inclusão das pessoas e a representação de todas e todos nos espaços coletivos. A sociedade branca, patriarcal, acumuladora e heteronormativa já mostrou a que veio e o que testemunhamos é aterrorizante. Essa é uma luta de todas as pessoas, antes que não haja mais possibilidade de retorno, antes que o assassinato de indígenas e indigenistas, de defensores do meio ambiente e dos direitos humanos, de jornalistas e, principalmente, de pessoas negras e periféricas não nos provoque, sequer, qualquer sensação de tristeza ou indignação.

(*) Alessandra Elias de Queiroga é graduada em direito e ciências sociais e mestre em Direito pela Unb. Integra os coletivos Transforma MP e ABJD, além do comitê facilitador do Fórum Social Mundial Justiça e Democracia.

Texto publicado originalmente em: https://sul21.com.br/opiniao/2022/06/cotas-raciais-uma-urgencia-civilizatoria-por-alessandra-elias-de-queiroga/

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